terça-feira, 29 de dezembro de 2015

CONTO - A Boneca de Caixa

- Há um desalento, percebes? Sinto-o, por exemplo,  quando olho para algo que acho bonito e me apetece chorar. Quando olho para alguém que gosto e me apetece abraçá-lo até doer porque não tenho palavras para expressar o que aquela pessoa significa para mim e isso entristece-me. A falta de palavras. O mau uso delas. Acho que estou a perder a capacidade de ter uma boa conversa, não consigo usar as palavras adequadas, tenho lapsos de discurso, de memória. Sinto que num futuro próximo hei-de ter uma doença crónica e aí começará o meu verdadeiro envelhecimento.
- Não será só cansaço? Este mundo está pior, é certo. É cada vez mais complicado viver nele. Mas nunca te vi como desistente.
- A desistência pressupõe luta por uma possível vitória, não? Não vejo vitória alguma, portanto não serei desistente.
- Sempre te achei uma excelente confidente. É tão bom falar contigo. Uma pessoa acaba de falar contigo e sente energias renovadas. A sério, não o digo para te animar. E sei que a minha opinião é partilhada por outros.
- Agradeço. Mas sabes o que é ouvir-te essas palavras, sabê-las sinceras, e não sentir minimamente que correspondam à minha pessoa? Como se fosse um engano, como se vocês não me conhecessem minimamente. Como se ainda não tivessem percebido a fraude de pessoa que sou. Que força tem a minha ajuda, as minhas palavras, se não me valho a mim mesma?
- Oh, que nada. Talvez te vejamos melhor que tu própria. Ninguém consegue enganar por tanto tempo.
- Há um desalento, percebes? Sinto-o por exemplo, quando sei que o Mal é muito mais forte que o Bem, e choro quando vejo justiça feita. Não devia ficar feliz? Brindar a isso? Então porque choro? Tenho os canais emocionais trocados?
- Chora-se de alegria...
- Sempre?... É como se vivesse numa bolha e o mundo não conseguisse entrar... Tudo nasce, desenvolve, evolui, morre e eu sou simplesmente uma espectadora disso tudo. O que mudarias em mim?
- O quê?
- O que mudarias em mim? O que achas que eu tenho de mal? A sério, diz-me. Eu sei que é difícil dizermos certas verdades, mas pensa que me estarás a ajudar a sair da redoma e a ganhar uma nova vida.
- Essa pergunta não tem nexo algum. Além disso,  não nos compete a nós próprios descobrir essas coisas?
- Sim, mas e se o próprio não consegue discernir? Não merece uma ajuda?
- Imagina que te dizia algo que devias mudar e mesmo assim depois não o conseguirias fazer? Não te sentirias ainda pior?
- Mas eu mudava...
- Como podes garantir tal? Podias achar que eu não tinha razão.
- Não me vais dizer, portanto...
- Não. Não, assim. A cru. Até porque o que tenhas que menos me agrade faz de ti a pessoa que és no global e eu gosto muito de ti assim. Num todo.
- Há um desalento, percebes? Como se tudo o que toda a gente faz é melhor e mais interessante do que o que eu faço. Como quando me elogiam pelo meu trabalho e só me apetece chorar. Porque mesmo sabendo que sou competente, preciso que mo digam para me sentir mais segura, porque acho que devia ser ainda mais competente. Porque senão não valerei nada.
- És tão bonita, rapariga. Como é que não vês isso?
- De que me adianta? Vês? Isso é outra coisa... Não me reconheço nesses elogios.
- Apetece-me bater-te... E de que adianta?? Nem sei que te responda...
- Há um desalento, percebes? Como quando vejo um casal às compras e me emociono. Até podem estar com cara de enfado, mas fazem algo juntos. Permitiram-se à partilha. Alguém quis partilhar algo contigo. Quando eu penso que alguma coisa boa surgiu, sou ultrapassada.
- Como ultrapassada?
- Ultrapassada pela novidade, pela curiosidade, pelo charme e maneira de ser de outros, pela sua facilidade de comunicação, pelo seu atrevimento ou atitude desafiante, carismática, pela sua beleza física. Eu sinto-me como aquelas bonecas que são oferecidas, mas ficam enfiadas nas caixas para não se estragarem. Ocasionalmente a criança lembra-se dela, olha-a dentro da caixa, cobiça-a (não o suficiente para a tirar da caixa), sabe bem vê-la lá, intacta, quase como um troféu. Mas são os outros brinquedos que têm o prazer do toque, das aventuras do imaginário. E com o tempo acabas por desaparecer do seu pensamento e por perder o seu (algum) interesse, originado pela falta das tropelias das vivências.
- Porque te deixas ficar? Porque não dás luta?
- Porque não me consigo fazer valer. E depois mais vale resguardares-te para não sofrer. Por muito que estejas lá para sorrir, apoiar, falar, partilhar, nunca será suficiente. Nunca serás a eleita. Por isso... é melhor fazer cada vez menos ainda que a vontade seja fazer cada vez mais.
- Podes não ser suficiente para ser a eleita, mas valeres noutras coisas...
- Ficarias feliz em ser só uma boneca de caixa?
- Não... Mas agora posso te dizer o que mudaria em ti.
- O quê?
- Achares que és uma mera boneca...


                                                        (Foto de Francesca Woodman)