terça-feira, 20 de maio de 2014

20/05/2010

Há pormenores que se cravam em nós, mesmo antes de lhes percebermos o sentido.
Assim aconteceu com aquela manhã de Maio. Estava quente..., estranhamente calma... e silenciosa...
Paz...
Não vi ninguém numa casa cheia de gente e saboreei aqueles momentos a sós. Mas algo indefinido pairava no ar.
Era um pressentimento... e a decisão de outrem, pensei mais tarde ao recapitular aquele dia.
Mal cheguei ao trabalho o telemóvel tocou. Assim que ouvi a minha mãe soube no momento o que ela me ía dizer: "Sandra..."
E pela 3ª vez na minha vida uma emoção descontrolada trespassou-me completamente, como se o meu corpo se tivesse separado de mim e reagisse sem a minha ordem.
Das três vezes foi por sentir a perda eminente.
E desde então, o corpo desobedeceu mais vezes, como se uma dor fantasma tivesse ficado a habitar nele sem querer saber do meu consentimento.
Recordo-me da força que tive de arranjar para voltar a uma casa onde não queria entrar; daquela viagem de carro, só eu, por minha conta e risco, uma solidão absoluta, de o conduzir em choro compulsivo; das mãos... de como tremiam as minhas mãos...; de olhar para quem passava por mim na sua própria vida - naquele momento com certeza mais ordeira que a minha - e gritar-lhes um pedido de socorro mudo e aflitivo "Ajudem-me, acabei de perder o meu pai!"
O encontro... o desviar do olhar de um corpo vivo até há tão pouco tempo... e querer desesperadamente recuar até duas horas antes, rotina sem chama, agora tão desejada.
E se eu o tivesse chamado...? E se eu tivesse ido à sua procura...?
O horror de pensar que em simultâneo às minhas rotinas matinais, no mesmo sítio, à mesma hora, outras se quebravam. A culpa...
Daquele dia fica o curto-circuito tétrico dos pensamentos: a solidão mata em vida; a celeridade das más notícias; a maledicência e a curiosidade mórbida tal qual abutres a rondarem as presas sangradas; o arranjar força na minha dor para confortar a dos meus; a dor vivida a sós; o ombro precioso dos amigos e a sua generosidade sem fim; a falta de palavras; a vontade de desaparecer; o vazio do tempo de espera; o ter de ter lucidez para tratar das questões práticas e frias de um óbito; o recordar das tentativas de despedida infrutíferas do pai, só naquele dia adivinhadas...
Ninguém santifica com a sua morte, mas os laços de sangue dos vivos deixados só lhes permite o choque do sofrimento.

A paz que eu senti naquela manhã não era a minha. Era a paz de uma escolha... e da coragem.









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