terça-feira, 29 de dezembro de 2015

CONTO - A Boneca de Caixa

- Há um desalento, percebes? Sinto-o, por exemplo,  quando olho para algo que acho bonito e me apetece chorar. Quando olho para alguém que gosto e me apetece abraçá-lo até doer porque não tenho palavras para expressar o que aquela pessoa significa para mim e isso entristece-me. A falta de palavras. O mau uso delas. Acho que estou a perder a capacidade de ter uma boa conversa, não consigo usar as palavras adequadas, tenho lapsos de discurso, de memória. Sinto que num futuro próximo hei-de ter uma doença crónica e aí começará o meu verdadeiro envelhecimento.
- Não será só cansaço? Este mundo está pior, é certo. É cada vez mais complicado viver nele. Mas nunca te vi como desistente.
- A desistência pressupõe luta por uma possível vitória, não? Não vejo vitória alguma, portanto não serei desistente.
- Sempre te achei uma excelente confidente. É tão bom falar contigo. Uma pessoa acaba de falar contigo e sente energias renovadas. A sério, não o digo para te animar. E sei que a minha opinião é partilhada por outros.
- Agradeço. Mas sabes o que é ouvir-te essas palavras, sabê-las sinceras, e não sentir minimamente que correspondam à minha pessoa? Como se fosse um engano, como se vocês não me conhecessem minimamente. Como se ainda não tivessem percebido a fraude de pessoa que sou. Que força tem a minha ajuda, as minhas palavras, se não me valho a mim mesma?
- Oh, que nada. Talvez te vejamos melhor que tu própria. Ninguém consegue enganar por tanto tempo.
- Há um desalento, percebes? Sinto-o por exemplo, quando sei que o Mal é muito mais forte que o Bem, e choro quando vejo justiça feita. Não devia ficar feliz? Brindar a isso? Então porque choro? Tenho os canais emocionais trocados?
- Chora-se de alegria...
- Sempre?... É como se vivesse numa bolha e o mundo não conseguisse entrar... Tudo nasce, desenvolve, evolui, morre e eu sou simplesmente uma espectadora disso tudo. O que mudarias em mim?
- O quê?
- O que mudarias em mim? O que achas que eu tenho de mal? A sério, diz-me. Eu sei que é difícil dizermos certas verdades, mas pensa que me estarás a ajudar a sair da redoma e a ganhar uma nova vida.
- Essa pergunta não tem nexo algum. Além disso,  não nos compete a nós próprios descobrir essas coisas?
- Sim, mas e se o próprio não consegue discernir? Não merece uma ajuda?
- Imagina que te dizia algo que devias mudar e mesmo assim depois não o conseguirias fazer? Não te sentirias ainda pior?
- Mas eu mudava...
- Como podes garantir tal? Podias achar que eu não tinha razão.
- Não me vais dizer, portanto...
- Não. Não, assim. A cru. Até porque o que tenhas que menos me agrade faz de ti a pessoa que és no global e eu gosto muito de ti assim. Num todo.
- Há um desalento, percebes? Como se tudo o que toda a gente faz é melhor e mais interessante do que o que eu faço. Como quando me elogiam pelo meu trabalho e só me apetece chorar. Porque mesmo sabendo que sou competente, preciso que mo digam para me sentir mais segura, porque acho que devia ser ainda mais competente. Porque senão não valerei nada.
- És tão bonita, rapariga. Como é que não vês isso?
- De que me adianta? Vês? Isso é outra coisa... Não me reconheço nesses elogios.
- Apetece-me bater-te... E de que adianta?? Nem sei que te responda...
- Há um desalento, percebes? Como quando vejo um casal às compras e me emociono. Até podem estar com cara de enfado, mas fazem algo juntos. Permitiram-se à partilha. Alguém quis partilhar algo contigo. Quando eu penso que alguma coisa boa surgiu, sou ultrapassada.
- Como ultrapassada?
- Ultrapassada pela novidade, pela curiosidade, pelo charme e maneira de ser de outros, pela sua facilidade de comunicação, pelo seu atrevimento ou atitude desafiante, carismática, pela sua beleza física. Eu sinto-me como aquelas bonecas que são oferecidas, mas ficam enfiadas nas caixas para não se estragarem. Ocasionalmente a criança lembra-se dela, olha-a dentro da caixa, cobiça-a (não o suficiente para a tirar da caixa), sabe bem vê-la lá, intacta, quase como um troféu. Mas são os outros brinquedos que têm o prazer do toque, das aventuras do imaginário. E com o tempo acabas por desaparecer do seu pensamento e por perder o seu (algum) interesse, originado pela falta das tropelias das vivências.
- Porque te deixas ficar? Porque não dás luta?
- Porque não me consigo fazer valer. E depois mais vale resguardares-te para não sofrer. Por muito que estejas lá para sorrir, apoiar, falar, partilhar, nunca será suficiente. Nunca serás a eleita. Por isso... é melhor fazer cada vez menos ainda que a vontade seja fazer cada vez mais.
- Podes não ser suficiente para ser a eleita, mas valeres noutras coisas...
- Ficarias feliz em ser só uma boneca de caixa?
- Não... Mas agora posso te dizer o que mudaria em ti.
- O quê?
- Achares que és uma mera boneca...


                                                        (Foto de Francesca Woodman)

terça-feira, 24 de novembro de 2015

O Lugarejo

Logo que teve oportunidade abandonou o lugarejo onde nascera.
Estudar fora para ser “doutora” foi a saída airosa e pouco culpabilizante que arranjara para se afastar dos pais sufocantes e vizinhos que nada lhe diziam. Achava-se mais inteligente. Detestava aquela falta de maneiras das gentes da lavoura.
Era ela e mais uns poucos jovens naquela aldeia de velhos, perdida num interior também ele perdido. Tinham-lhe feito planos para se casar com um deles quando fosse “crescida o suficiente”, o que lá isso quisesse dizer.
Regressava 20 anos depois da morte da mãe, para tratar do funeral do pai. Sempre detestara o seu feitio violento e autoritário, que a doença – disseram-lhe – tinha entretanto suavizado. 
Tivera-lhes algum amor, mas não lhes tivera qualquer carinho.
Desde que tinha deixado o lugarejo, só voltou a ver a mãe mais uma vez, no seu velório. Viu descer o caixão, despediu-se do pai à pressa, “se precisar de alguma coisa, diga” e foi embora. 
O pai nunca disse nada…
A D. Conceição, a vizinha do lado, ligou-lhe a comunicar a morte e encarregara-se dos primeiros preparativos. O pai já velava na capela. "O seu paizinho teve sempre o seu número de telefone escrito no quadro do frigorífico, foi fácil encontrar."  
"Sempre", pensou...
Saiu da Junta de Freguesia onde pediu o número da campa da mãe - 231 - e dirigiu-se a pé para o cemitério.
- Belinha?! É a menina Belinha?! 
Quase de imediato a senhora abraçou-a, deixando-a sem acção.
- Há tantos anos, menina! E que pena só a ver nestas alturas tristes. Mas está bonita. Sempre foi uma moça muito bonita.
A senhora não largava as suas mãos e aqueles dedos rugosos, ásperos, com unhas sujas amarelecidas incomodavam-na profundamente, mesmo que acompanhados de palavras atenciosas.
Tornara-se pouco simpática - ou antipática? - e mesmo penitenciando-se por isso, não o conseguia evitar.
- Ainda bem que já não há mais ninguém para morrer senão só me continuaria a ver nestas ocasiões. 
A senhora estancou. E ela engoliu em seco de tão arrependida do que tinha acabado de dizer.
- Desculpe, D. Dorminda, estou muito transtornada - mentia -, não era isto que queria dizer - mentia. Vou agora ao cemitério e estou muito nervosa - não mentia.
- Eu compreendo, menina. A dor faz-nos dizer coisas sem sentido. Mas olhe, se a anima, bem que pode orgulhar-se do seu paizinho. Fez muito pela aldeia. O que fosse preciso estava sempre pronto a ajudar.
Sorriu secamente. Nunca entendera as boas acções fora de casa quando não as havia dentro. Na sua casa sempre houvera pudor em mostrar amor, carinho, atenção. Como se mostrar algum sentimento fosse sinal de fraqueza. Mas teria havido, de facto, algum sentimento?
Uma vez mostrou ao pai a mini-saia que a mãe lhe tinha feito para levar à festa da aldeia "Gosta, pai?"
"Viraste vaidosa? Olha que as mulheres sérias querem-se recatadas, humildes." Perdeu o sorriso instantaneamente e não mais o recuperou naquela noite. Nem quando dançava abraçada ao amor da altura, que lhe deixou de falar precisamente nessa noite. "Teria pensado ele o mesmo dela?" Depois viu que não, quando soube ter sido trocada pela melhor amiga que nessa noite tinha levado uma camisola com um grande decote em v. A amiga sempre tinha tido mamas maiores e deixava-se beijar e apalpar nos fardos de palha do Sr. Joaquim das Pombas, onde se escondiam sorrateiramente sem nunca terem sido apanhados.
Agradeceu a atenção "peço desculpa, mas tenho de ir". Precisava de se refugiar algures, evitar todo o tipo de olhares.
Em frente ao cemitério encontrou um café, sem viv'alma, "Que bom". 
- Um café curto, por favor.
O homem olhou-a prolongadamente. Tinha um ar seboso, camisa de mau gosto que mal lhe tapava a barriga proeminente.
- Vai-me servir um café ou não?
- Sim, claro.
- Curto, chávena quente. 
O cinto mal segurava as calças. O homem baixou-se com dificuldade para apanhar algo do chão e ela viu-lhe o rego. Desviou o olhar, enojada.
- Ora aqui está o café como deseja.
- Obrigada. Quanto é?
- Nada, oferta da casa.
- A que propósito?
Olhou-a de novo fixamente. 
- É regra da casa. O primeiro cliente tem direito a um café de graça. Calhou à senhora.
Bebeu o café em dois tragos. Os olhos dele desta vez pareceram-lhe familiares
- Não aceito. Nesta rua são mais os mortos que vivos.  Deve precisar do dinheiro. 1 euro, fique com o troco.
E saiu porta fora.
Só já na porta do cemitério o reconheceu. Olhou para a porta do café, atónita. Aquele não podia ser o César! O César dos olhos verdes raiados de azul - agora mortiços - que queria ser arquitecto, médico, advogado, construtor de pontes?! O César com quem tinha dado o primeiro linguado "mas não me podes apalpar!" no meio do milho?! O César que tinha um rabo tão bem feito que dava vontade de o ver sempre de costas?! O César que lhe tinha prometido uma volta de mota com ele bem agarradinhos, mal a comprasse?! O César que afinal a trocou pela melhor amiga, a das mamas grandes?! O que é que restava dele?!
Mal refeita, enfrentou o cemitério ,"os mortos não jazem só aqui".
Olhou para todas aquelas campas, momentaneamente sem saber o que fazer, por onde procurar a campa da mãe. "Esqueceste-te do sítio, merda de filha que tu és."
- Precisa de ajuda, menina Belinha?
Virou-se, sobressaltada. 
- Se não lhe causar transtorno, D. Dorminda...
- Claro que não, é na ala lá mais abaixo.  A sua mãezinha ficou num sítio muito bonito. O seu paizinho tinha muito brio na campa, vinha cá todas as semanas lavar o mármore e mudar as flores. Agora, aqui ficarão... só com a pedra - alfinetou.
Está a ver este banquinho? Aqui se sentava ele, a falar com a sua mãezinha. "Tenho muitas saudades da minha santa" disse-me ele muitas vezes.
"Santa", pensou ela. Sem dúvida que sim...que aturou as noites de jogatana e os regressos pelas madrugadas dentro vindo dos encontros com as putas da estrada que levava para o pinhal e com quem gastava o dinheiro das compras da casa. Saudades? Só se fosse do exercício de virilidade que transformava a mãe num saco de boxe "Onde estão os meus chinelos, puta de merda? Nem dona de casa sabes ser, sua cabra. Até as putas me lavam os pés melhor que tu!"
- Está bem, menina?
- Como?!
- Está muito pálida e com uma cara estranha.
Não estava habituada a fraquejar, a demonstrar emoção. Não estava habituada a que reparassem na sua pessoa. Um mau estar súbito apoderou-se dela, tudo começou a mover-se debaixo dos seus pés, as campas pareciam sair do sítio, as flores pareciam estrume, precisava de sair dali o mais rapidamente possível.
Desatou a correr pelo cemitério fora, como se fugisse de algo invencível que a perseguia sem piedade alguma. Só parou numa rua das proximidades, longe de tudo e de todos.
"É só espaço, Isabel, só espaço. Não é tempo. Respira. Acalma-te."
Um vómito sacudiu-a, mas nada saiu, a não ser uma aflição tremenda.
E numa espécie de uivo, chorou, chorou convulsivamente por ser uma promessa não cumprida...

(Talvez continue...)



terça-feira, 3 de novembro de 2015

O (não) exemplo

Das coisas a que sou particularmente sensível é a formação/educação de uma pessoa pelo "não exemplo".
Nem todos têm a sorte de ter os melhores exemplos familiares, de crescerem em meios sociais que promovam o bem-estar/ser de uma pessoa, mas isso não tem de ser uma chaga que acompanhe uma vida inteira. Essa chaga até poderá existir, mas será uma alavanca para uma luta superior e não para nos reduzir a meros sobreviventes da vida.
Não, não falo de grandes feitos.
Falo daquele/a que não tendo um ambiente familiar caloroso, consegue criá-lo com a sua futura família.
Não, não falo do menino pobre que virou milionário.
Falo daquele/a que vivendo na pobreza, conseguiu fugir ao preconceito tantas vezes impostos por outros e ter uma vida economicamente estável.
Falo daquele/a que não tendo possibilidade de aprender a ler e a escrever, já adulto resolve vencer obstáculos que achava intransponíveis. Ou mais, que mesmo não sabendo ler e escrever vai vivendo.
Falo das mulheres que já bem adultas resolvem enfrentar família, mundo porque não suportam mais as sevícias em que vivem e decidem lutar pela sua independência.
Não, não falo daquele que dedica a sua vida aos outros.
Falo daquele/a que estando bem não é cego às dificuldades dos outros e que o seu pouco é sempre muito, que não se coíbe em partilhar.
Falo daquele/a que não tendo sido bafejado com mimos, carinho e amor na sua infância e juventude consegue dá-los, mesmo que a medo; que não nega o abraço e que abraça.
Falo daquele/a que tendo recebido tão pouco afecto, é perdulário no mesmo. Mesmo que isso não lhe traga o que deseja.
Falo daquele/a, vítima de violência doméstica, que consegue ter um sorriso para tantos e ainda acreditar numa vida melhor.
Falo da vítima sexual, que com a sua auto-estima de rastos, consegue refazê-la, amar, ter e dar prazer.
Falo daquele/a que contra tanto preconceito social rema contra a maré porque quer simplesmente ser feliz à sua maneira.
Falo daquele/a que nunca foi amado e que consegue amar.
Falo daquele/a que foi enganado e que continua a acreditar porque não se quer render ao cinismo.
Falo daquele/a vítima de injustiça que tem de refazer o seu ser e a sua vida.
Falo daquele/a que sendo constantemente maltratado não vê a violência como resposta ou solução.
Falo daquele/a que nunca teve um Natal verdadeiramente feliz, mas que continua a acreditar nele como se menino fosse.
Falo daquele/a invisível ao mundo, mas que contribui para um mundo melhor.




quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Olhos nos olhos...

... dançando
... cumprimentando
... agradecendo
... confrontando
... discutindo
... amando
... conversando
... (sor)rindo
... desejando
... brincando
... trabalhando
... chorando
... apoiando
... escutando
... elogiando

... estando





sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Paralelismos insanos...


... ainda assim instantâneos…

 

Ao retirar as coisas do carro, depois de o estacionar, vejo um gatito amarelo e branco em frente que me mia.

Já o conheço daquela zona e pensei na brincadeira “Está a dar um olá”.

Continua a miar e vejo-me a perguntar-lhe “Então? O que queres?” e ele atravessa a rua.

Penso “olha, até já ganhou confiança e vem ter comigo.”

Ao fechar o carro, olho para trás e vejo dois gatos que vão ao encontro do amarelito.

“Ah, já percebi”, com decepção.

 The story of my life…

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Vergonha

Por estes dias - tempos -, tenho sido assaltada regularmente pela vergonha.
Considerando-me neste momento completamente espoliada.
Há ladrões temíveis a soldo da vergonha como a integridade, o perfeccionismo, a coerência de ser, a auto-crítica, a ilusão, a preguiça, o orgulho ....
E em momentos de ir apanhando os bocados para reconstruir o reparável, para além das nossas ainda existentes valências, há coisas que nos vêm parar às mãos como livros, filmes, frases, exemplos de vida, de sobrevivência, de luta, ou um vídeo como o abaixo (Listening to shame), que nos ajudam nessa tarefa.

Deixo para o fim os que mais nos valem: a família e os amigos, que muitas vezes nos acolhem nas maiores parvoíces ou sofrimentos sem perguntarem nada e deixando-nos estar ali, entre braços, a chorar copiosamente de vergonha.


Vulnerability is not weakness. 
Vulnerability is an emotional risk.     


Vulnerability is our most accurate measurement of courage.





terça-feira, 11 de agosto de 2015

All sad people like poetry

E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão Ferreira


quinta-feira, 4 de junho de 2015

Rasto

O tempo tudo cura. Dizem...
Não sei se é o tempo se é uma capacidade regeneradora que nós temos, mais eficaz umas vezes que outras.
Não deixa de ser curioso olharmos para alguém que já nos foi especial e nada nos dizer actualmente.
Por vezes insisto nesse olhar e tento de alguma forma repescar qualquer sentimento que seja. Não, não é o amor que senti, mas as valências dessa pessoa, aquele "it" que em determinada fase da minha vida me fez amá-la e depois sofrer quando a perdi.
Mas o que sinto é um pesar. Por aquela pessoa ter entrado na minha vida, ter tido a sua importância e hoje nada restar. Por ter saído e por, pouco a pouco, se ir tornando numa memória cada vez mais vaga até um dia já nem pesar vá sentir.
É uma sensação de perda... porque as pessoas deixam de significar. Tal como eu deixei.
E isso também custa... deixar de ser significativo para alguém. Aquilo que achávamos tão especial, afinal... não era.
Creio que todos nós desejamos deixar algo de bom como nosso rasto. E talvez as partidas nos magoem porque nos obrigam a uma introspecção dolorosa. Mesmo depois da dor ultrapassada.
Dizem que há uma razão para as pessoas entrarem na nossa vida. Consequentemente para sair também.
Não sei, escapa-me à compreensão. O que sei é que me achei especial e deixei de o ser. Ou nunca cheguei a sê-lo. E isso magoa. E depois só entristece. E depois só te faz questionar o teu rasto.



sexta-feira, 8 de maio de 2015

Ser

Somos o que de facto somos...
Somos o que ambicionamos ser.
Somos como nos vêem.
Somos como nos vemos.
Somos o que nem imaginamos ser.
Somos o que tememos.
Somos não sendo.
Somos muito.
Somos pouco.
Somos nada.
Esperamos Ser.


sexta-feira, 27 de março de 2015

Teatro

Tenho uma maior predisposição para o drama.
Há uma drama queen em mim que anseia por alimento constante.
É a minha zona de conforto, ao contrário da comédia que me faz sentir mais exposta.
Tenho um certo pudor na demonstração de alegria. É uma grande parvoíce, eu sei, mas a verdade é que o sinto regularmente.
Quando começo com graçolas, piadas, brincadeiras e provocações é sinal que  passei a confiar nas pessoas com quem o faço.
Até lá vêem a Sandra reservada, meio misteriosa. Para alguns inatingível, para outros até antipática ou com a mania, tenho a certeza.
Assim se passa em palco: o maior à vontade no drama que em comédia.
O ano passado deram-me o enorme desafio de voltar a representar e para me amedrontar ainda mais desafiei-me a mim própria criando uma personagem cómica. Saiu-me das entranhas e foi doloroso, reconheço-o. Nem sempre o que gostamos de fazer é fácil, mas é uma sorte poder fazê-lo.
O feedback, esse foi maravilhoso a todos os níveis.
Não me considero dotada a nível artístico, seja no teatro ou na dança. Sou esforçada, exigente e trabalhadora. Isso traduz-se em perfeccionismo, em estar com alma nas coisas, o que leva as pessoas a confiarem no meu trabalho. É sentir essa confiança em mim que me faz feliz.
Esse espectáculo do ano passado teve a presença da minha mãe e pessoas que me conhecem desde pequena. Pessoas que só vêem a Sandra reservada.
Senti necessidade de saber o que a minha mãe tinha achado da minha prestação. E não me esquecerei dos seus olhos brilhantes e sorridentes ao dizer "a rapariga transforma-se, tem jeito para fazer rir".
Significou o mundo o que ela me disse porque sei que sou uma pessoa difícil de me dar a conhecer e encontrei no palco a escapatória para tal. As personagens têm sempre de mim. Não propriamente traços de carácter, mas a vontade, a necessidade de expressão de tanta coisa que pelos canais "comuns" me é mais difícil. E depois, ou ao mesmo tempo, uma forma de diversão pura.
O teatro será sempre a história: a nossa misturada noutras, que queremos dar a conhecer.
E em que nos damos a conhecer.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Memória

Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio.

FOGO
Gastão Cruz



terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Sorrisos

Há sorrisos que nos prendem. O bom deles é que prendendo-nos são ao mesmo tempo uma liberdade.
Tímidos. Largos. Luminosos. Tristes. Carismáticos. Bondosos. Ingénuos. Sinceros. Francos...
A vida é melhor se sorrirmos. A vida é melhor quando sorrimos.
Isto não é um afirmação new age (ou se calhar é e nem o sei). É uma opinião. A minha.
Sorrir desperta. Sorrirem-nos também. Faz-no sentir parte deste mundo.
Sorrimos a alguém porque sim. Não importa a razão. Será sempre a melhor.

Depois há as pessoas que fazem de si missionárias do sorriso e que o levam aonde ele menos impera.
Pessoas sem comparação.
E quando elas desistem o nosso mundo encolhe de medo porque nos apercebemos que eram almas ainda maiores. Mesmo quando não sorriam interiormente conseguiam despertar sorrisos noutros. E pessoas assim farão sempre falta. Porque são sinal de força, de garra, de luta. Mesmo que optem por ir embora.
Quanto a nós... talvez devamos perpetuar um pouco dessa força não deixando morrer o nosso.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Vontades...

... otárias.

"A paixão faz um progresso enorme numa mulher no momento em que ela crê ter agido pouco generosamente, ou ter ferido uma alma nobre. Nunca se deve desconfiar dos maus sentimentos no amor, eles são muito salutares; as mulheres não sucumbem senão ao golpe de uma virtude.
A invenção do filme foi a virtude que me fez sucumbir."

"O meu amante de domingo", Alexandra Lucas Coelho



terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A maior das provas...

... é aceitarmo-nos. Realmente.
É deixar os pruridos e admitir que se é profundamente parvo, que sim olha temos pena noutro dia serei menos e está-se bem.
É aceitar que a bota não bate com a perdigota quando o racional mostra a rua pavimentada, larga, clara como a evidência e o emocional leva-te pelo caminho de terra batida e se houver uma ravina ainda melhor para dar mais ênfase à incongruência de se Ser e está-se bem amanhã tudo passa eu sei que gostam de mim se não gostarem está-se bem na mesma.
É aceitar que nem todos estão contigo como tu estás com eles porque não representas na vida deles o que eles representam na tua e lidares com isso como não sendo uma perda, e pior, uma falha tua.
É dizer não quando queremos e se levarem a mal que se foda amanhã é um novo dia.
É reconhecer a inveja que se tem do lugar que outros ocupam na vida das pessoas de há 3 linhas atrás e que o desejo de endemonizá-los é só porque lidamos melhor em querer "esganar" gente péssima a gente de bem que teve o engenho da proximidade ou simplesmente a sorte de ser mais querida e que não tem culpa disso e só nos compete a nós a abertura de mente para elogiar essa capacidade.
É aceitar que seremos sempre imaturos em muita coisa e paciência compensamos noutras.
É aceitar que precisamos que gostem de nós mais do que realmente queremos admitir e que não tem mal precisar de colo.
É aceitar que as minhas diferenças em relação aos outros não me diferenciam só me distinguem.
É saber lidar com o após-período-novidade, nosso e dos outros.
É aceitar as derrotas com desânimo, mas sabendo que haverão também vitórias.
É aceitar que há coisas que dificilmente chegam a nós e que devemos procurar alternativas ou soluções em vez de chorar no molhado.

Como é que se faz isto tudo?
Não sei... e começo a sentir cansaço de alma e ossos.


sábado, 10 de janeiro de 2015

Raízes invertidas

Pelo São Gonçalinho, festa tradicional muito querida em Aveiro, o meu pai chegava a casa com cavacas e bolinhos de gema de ovo. Estes últimos adorava (e adoro).
Mas havia sempre um travo amargo nestes bolos. Não entendia a razão para o meu pai ir sozinho à festa. E nunca fui capaz de lhe perguntar.
Teria ficado sempre mais contente se ele nos presenteasse com uma ida à festa todos juntos.

Hoje trouxe bolinhos de gema de ovo para casa...


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Cantos

Começar o ano com despedidas não é o mais agradável, com toda a certeza. A não ser aquelas que avizinham cenários melhores. Mesmo assim há sempre um travo agridoce. Mais acre ou mais doce depende do que se deixa para trás.
A despedida começou a ser desvendada em meados do ano passado, mas lá está, a esperança é a última a morrer...
Hoje em dia nem todos têm a sorte de trabalhar na área em que estudaram, de trabalhar com boas equipas, de gostar do que se faz. Eu tinha as três coisas. Tenho. Continuo na área, nova e boa equipa. Deveria sentir-me satisfeita, não é? Então porque raio sinto que me tiraram algo de que vou ter imensas saudades? Porque efectivamente tiraram-me e nunca nada é linear. A mesma coisa pode ter imensas nuances.
Porque a minha vida mudou sem minha autorização.
Em Dezembro as más notícias já adivinhadas foram dadas e a despedida preparada. E assim o fiz privadamente, com nostalgia, mas serena. E pensa-se que as coisas estão bem sanadas... até que voltas da vida te levam a ir ao local de trabalho uma última vez e vê-lo a ser desmantelado. E não se consegue evitar a comoção e pensar que ali residiu um período bem feliz, que esse estava a ser desmantelado também. Não nos apegamos a cantos, mas à história dos cantos.
Agora..., agora é o que for.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

"Não sei porquê"

A verdade evidente é que é um dia a seguir ao outro.
Não deixa, no entanto, de haver um sentir diferente que o distingue dos demais dias, ainda que parecido com tantos outros anteriores 1 de Janeiro no desejo, na esperança de um ano melhor para mim, para os que me rodeiam e para todos cujas vidas não se cruzam com a minha mas com quem empatizo.
Também se assemelha no esmorecimento que se segue, no comprovar esperado de que as coisas melhoram nas datas que elas bem entendem e não num desejo a 31 de Dezembro a virar para 01 de Janeiro.

E assim se repete, ano após ano, uma esperança única, resiliente que desejamos nunca se desvaneça (para nosso próprio bem), mas fátua.
Tanta esperança em algo melhor no último dia de 2013 e a verdade é que saí desanimada de 2014. Não foi um ano fácil.
Um ano de mudanças. As que não queria concretizaram-se. As que queria não se concretizaram.
Mas um ano de desafios... Quase todos superados.
Um ano em que outros acreditaram em mim e me abriram portas.
Um ano em que aproveitei essas portas abertas para explorar capacidades adormecidas, sonhos antigos, lutando para não me vergar ao receio, à timidez, à vergonha, à minha feroz auto-crítica.
Um ano de amizades reforçadas. Sou tão rica nesse campo...
Um ano em que amigas tão queridas partiram em busca de oportunidades profissionais e ainda que longe estão perto.
Um ano de aprofundamento de outras amizades que estão por perto. Confidências gratas.
Um ano de novos desafios profissionais. O aceitar novos rumos impostos e mais uma vez provar-me que consigo a superação.
Um ano de encerrar do pano de sentimentos para abrir caminho para outros. O que não deixa de provocar alguma nostalgia. Querer acreditar que não foi perda de tempo, que foi um ganhar de algo que ainda não atingi, mas que acabou e ainda bem.
Mais um ano que comprova a minha teoria cada vez mais credível de que há coisas que nunca chegarão a este campo fértil em tanto, mas que não consegue produzir frutos.

Mas depois existem os "não sei porquê"...
Crianças que gostam de mim e não sabem porquê, amigas que vêem coisas e se lembram de mim não sabendo porquê, músicas que me enviam e não sabem bem explicar porquê, empatias que surgem e não sei porquê...

E é com esta certeza que inicio o meu 2015: que para além do óbvio "porque", são também os "não sei porquê" que vamos deixando como rasto noutras pessoas a nossa pegada no mundo e a nossa riqueza intrínseca que tantas vezes desvalorizamos ou não temos noção dela.