terça-feira, 12 de agosto de 2014

Conto - II

Ela encontrava-se numa fase aparentemente calma da sua vida. Nem tudo lhe corria de feição, mas o bom que existia compensava algumas desventuras. Propusera-se a alguns desafios, estes tinham-lhe corrido bem. Sentia-se satisfeita, confiante até. Ainda que uma confiança nunca linear. Nunca lhe dava grande crédito porque esta ziguezagueava imenso. Tinha sempre muito cuidado no excesso de confiança e/ou felicidade. Na expressão de alguma efusividade. Tinha receio de as perder por isso. Habituara-se a uma confiança efémera, fátua. Nunca saberia se por conspiração do universo, se por problema mental.

Num dia como outro qualquer (assim achava), um gesto igual a tantos outros anteriores marcaria a diferença. A vida é assim, muito dos gestos que implicam diferença não vêm marcados com "very important moment for the future". Vêm mascarados de rotina.
A atenção lisongeou-a, mas procurou minorá-la ao máximo. A atenção surpreendeu-a, mas francamente nem se achava digna dela. Impôs-lhe o adjectivo "passageira" e procurou ignorá-la. Para reforçar o efémero da coisa deu-lhe um prazo "6 meses e será passado".
A vida é matreira.
Contra todas as suas expectativas a conversa foi-se tornando boa, o contacto regular espantou-a. A confiança e o à-vontade foram ganhando terreno. Mas o alarme mental nunca a abandonou. Simplesmente achava bom demais para ser verdade.
Etapas que ela achava decisivas e que levariam a um "the end" porque assim tinha sido sempre, para sua surpresa, insistiam numa continuidade. Algo corria mal porque as coisas corriam bem. Ou quase...
Pelo meio, bateu-se sempre por ser ela própria. Não faria sentido de outra maneira. Acreditava que valeria por si. E foi abrandando os seus receios.
Esqueceu-se que o dar a conhecer pode ter um volte-face perigoso.
Nada é etéreo, ligeiro por muito tempo, a não ser que seja insignificante.
Começou a sentir a necessidade de um trato mais cuidado. Uma maior atenção que ela desejava espontânea e que não a pedia por não se achar no direito de. O não se achar no direito de alertou-a para a sua condição de ser e estar. E os seus alarmes regressaram, em força. Repreendeu-se e refreou toda uma conduta que queria natural e que começava a não o ser. Lembrou-se do prazo que tinha mentalmente instituído. Estava na hora, porque não acontecia?

A vida é matreira.
Num dia como outro qualquer, sem o esperar (ironia da vida), o silêncio impôs-se.
A vida é assim, muitas das palavras que nos saem não vêm marcadas com "danger". Vêm mascaradas de confiança, crença, à-vontade. E criam buracos de conversa.
Não sabia se ela tinha sido a razão ou outra coisa qualquer. Simplesmente, a partir desse dia, sentiu-se... insuficiente.
Recriminou-se pelo excesso de confiança em si. Já devia ter aprendido as partidas que lhe pregava.
De volta aos mínimos necessários de existência, deixar-se-ía ficar. Nunca tinha tido jeito para se fazer valer, para lutar por si, para competir. Os outros tinham sempre mais qualidades que ela, eram sempre mais interessantes. De que adiantava a luta? Para realçar as desigualdades?

Dizem que o que emanamos para o universo, ele dá-nos de volta.
Ela lamentava profundamente que as suas dúvidas, medos, desesperanças emanassem sempre mais forte que o Amor que tanto tinha para dar.




sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Linhas mestras


Não sei se serão só estas as coisas que importarão no fim. Tenho alguma dificuldade em resumir a vida por tudo aquilo que ela comporta. É, no entanto, muito importante a existência de linhas mestras. As de génese, as que criamos e desenvolvemos, as que defendemos, as que não gostamos. Estas últimas muito importantes porque saber o que não se quer pode ser uma valiosa orientação quando não sabemos bem o que queremos.

A linha mestra do Amor é incontornável. É pilar, coluna vertebral, entranhas, poro. Até quem opta pela solidão permite-se quebrar o seu rosário de vez em quando. Sofre por desamor algures, mesmo que a espaços. Ninguém consegue evitar uma felicidade imensa quando ama e é retribuído, mais do que o sorriso estampado na cara, é a força anímica que ganhamos.

O desapego é que é um osso muito duro de roer. Quando se gosta é muito difícil deixar ir, principalmente de forma graciosa. Qual o método indolor para se deixar de gostar de alguém rapidamente quando todo o nosso ser se conjugava com o outro? É muito complicado digerir a perda de estatuto especial ou aperceber-mo-nos que na realidade nunca o fomos. Isto ainda pior. Enfrentar o (nosso) engano, desmontar utopias, "teses líricas" juntamente com a decência e coragem de atitude de achar que cada um tem um direito de seguir com a sua vida, mesmo que isso não nos inclua e soframos horrores por isso. Mas esta atitude é imprescindível. Não há pior engodo que lutar por uma pessoa que não nos quer. Nunca dará o devido valor ao nosso sentimento e nós não nos estaremos a respeitar a nós próprios.

A ternura e cuidado no trato para com o outro é um lema. Nem sempre fácil de atingir, mas vale bem o esforço mesmo que rodeados de tubarões. E acredito que esta será a grande linha mestra que distinguirá a nossa vida em vida e morte, mais que o Amor. Viverá a meias com a sensação de desilusão, desalento, injustiça e deseja-se que nunca vencida por estas.
A estas palavras acrescento as linhas mestras da honestidade, da sinceridade, da integridade. Fala-se tanto, escreve-se tanto, diz-se tanto, aponta-se o dedo tanto. E se não revelarmos um pingo de consciência e humanidade nos nossos actos seremos uma fraude. E as consequências, não as sofreremos só nós.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Manifesto

Há dias em que parece que o mundo nos cai em cima. Seja porque se conjuga toda uma série de coincidências a complicar o que deveria ser simples, seja pelo acumular de tensões que não desaparecem com uma boa noite de sono ou um bom dia de sol.
Há dias que poderiam saltar do calendário.
I want my silly season... Até parece que isso este ano desapareceu. Quero aquela estação em que o fútil permite uma ligeira pausa da seriedade do restante ano, que o sol permite relaxar o corpo e dar azo à preguiça boa e despreocupada.
Há dias em que me canso do mundo. Entendo-o cada vez menos. Desilude-me cada vez mais.
I want my silly season to escape.
Não quero pensar no banco que está a pôr em causa o meu posto de trabalho.
Não quero pensar como tinha um trabalho tão interessante e que adorava e que de um momento para o outro mo foi retirado.
Não quero pensar na estupidez das pessoas e na minha imensa dificuldade em lidar com ela.
Não quero pensar nas minhas amigas que partem para os estrangeiro porque cá não vêm aproveitadas as suas capacidades de trabalho e que lá fora são reconhecidas.
Não quero chorar de desmotivação e exaustão a caminho de casa.
Não quero a solidão do fim de tarde.
Não quero adeus, muito menos dos fáceis. Se tiver que haver adeus que haja a dificuldade de uma despedida.
Não quero teias. Estou cansada das minhas teias.
Quero o aconchego de uma boa conversa.
Quero o meu humor de volta.
Quero acreditar que tudo tem sempre uma solução.
Quero acreditar que é sempre possível suplantar dificuldades de expressão.
Quero acreditar que nada é em vão.
Quero aqueles dias em que uma pessoa acorda a sorrir e faz sorrir.




sábado, 2 de agosto de 2014

Fogo autónomo

"Quando ele a serve, os olhos fixam-se nos olhos e algo muda, e o braço já não treme. É um instante grave, um desses instantes com o qual um dia se inventará um começo.
...
Não basta sair das mulheres para saber delas, nem mesmo entrar-lhes no corpo. Pode um homem entrar numa mulher sem nunca chegar a conhecê-la, para isso é preciso muito tempo e um desejo que não se apague com o dia.
Cada mulher é uma soma de parcelas sem conta, uma por cada homem passado, por cada homem querido, por cada dor, por cada filho. Há partes que dormem até que um toque as estremeça, outras que ardem num fogo autónomo, sem que nada o alimente.
Há mulheres tabuleiro, jogos de combinações infinitas onde nenhuma estratégia garante a vitória. Jogos de toda a vida, até que alguém se renda ou a luz se apague."

"No meu peito não cabem pássaros", de Nuno Camarneiro