sábado, 24 de maio de 2014

Manhãs

Há qualquer coisa de bom nas manhãs.
Aquelas manhãs ainda bem madrugadoras, lavadas pela chuva ou cheias de luz.
Uma luz fresca, pura, arriscarei inocente,... até ingénua.
As manhãs têm um efeito regenerador.
Olha-se em volta e não há quase ninguém. E se outro alguém passar, comunga do que sentes e não te perturba.
Quase como se cada um de nós entendesse que aquele tempo é-nos preciso e precioso para ganhar forças para o dia incógnito.
A tranquilidade sobrepõe-se ao tumulto que possa existir, este sabe que ainda não é hora de emergir. Virá com o passar das  horas, com o barulho da tarde e o peso da noite.
Há qualquer coisa de bom nas manhãs.
Talvez seja a esperança a pedir-nos para acreditar num dia feliz.

terça-feira, 20 de maio de 2014

20/05/2010

Há pormenores que se cravam em nós, mesmo antes de lhes percebermos o sentido.
Assim aconteceu com aquela manhã de Maio. Estava quente..., estranhamente calma... e silenciosa...
Paz...
Não vi ninguém numa casa cheia de gente e saboreei aqueles momentos a sós. Mas algo indefinido pairava no ar.
Era um pressentimento... e a decisão de outrem, pensei mais tarde ao recapitular aquele dia.
Mal cheguei ao trabalho o telemóvel tocou. Assim que ouvi a minha mãe soube no momento o que ela me ía dizer: "Sandra..."
E pela 3ª vez na minha vida uma emoção descontrolada trespassou-me completamente, como se o meu corpo se tivesse separado de mim e reagisse sem a minha ordem.
Das três vezes foi por sentir a perda eminente.
E desde então, o corpo desobedeceu mais vezes, como se uma dor fantasma tivesse ficado a habitar nele sem querer saber do meu consentimento.
Recordo-me da força que tive de arranjar para voltar a uma casa onde não queria entrar; daquela viagem de carro, só eu, por minha conta e risco, uma solidão absoluta, de o conduzir em choro compulsivo; das mãos... de como tremiam as minhas mãos...; de olhar para quem passava por mim na sua própria vida - naquele momento com certeza mais ordeira que a minha - e gritar-lhes um pedido de socorro mudo e aflitivo "Ajudem-me, acabei de perder o meu pai!"
O encontro... o desviar do olhar de um corpo vivo até há tão pouco tempo... e querer desesperadamente recuar até duas horas antes, rotina sem chama, agora tão desejada.
E se eu o tivesse chamado...? E se eu tivesse ido à sua procura...?
O horror de pensar que em simultâneo às minhas rotinas matinais, no mesmo sítio, à mesma hora, outras se quebravam. A culpa...
Daquele dia fica o curto-circuito tétrico dos pensamentos: a solidão mata em vida; a celeridade das más notícias; a maledicência e a curiosidade mórbida tal qual abutres a rondarem as presas sangradas; o arranjar força na minha dor para confortar a dos meus; a dor vivida a sós; o ombro precioso dos amigos e a sua generosidade sem fim; a falta de palavras; a vontade de desaparecer; o vazio do tempo de espera; o ter de ter lucidez para tratar das questões práticas e frias de um óbito; o recordar das tentativas de despedida infrutíferas do pai, só naquele dia adivinhadas...
Ninguém santifica com a sua morte, mas os laços de sangue dos vivos deixados só lhes permite o choque do sofrimento.

A paz que eu senti naquela manhã não era a minha. Era a paz de uma escolha... e da coragem.









segunda-feira, 12 de maio de 2014

Maiorias

A propósito de o advogado Atticus Finch estar a defender um homem negro e ser acusado pela sociedade racista dos anos 30 um "amante de negros"...

- Atticus, deve estar errado...
- Então porquê?
- Bem, a maioria das pessoas parece pensar que tem razão e que o pai não...
- Têm todo o direito de pensar assim, e têm todo o direito a que se respeitem as suas opiniões - concordou Atticus -, mas antes de eu conseguir viver com outras pessoas tenho de viver comigo. A única coisa que não obedece a uma regra maioritária é a consciência de cada pessoa.
...
- Querida, nunca é insultuoso sermos chamados aquilo que outras pessoas consideram uma asneira. Isso só demonstra o quanto essas pessoas são pobres, não te magoa.


Não Matem a Cotovia, de Haper Lee

***

Movo-me em vários círculos e sei que a minha presença em alguns é só tolerada, suportada.
Não é fácil ser-se.
Ainda que com o seu grau de dificuldade inerente, é sempre mais fácil conviver com quem gosta de nós.
Não deixa de ser doloroso sentir que não somos apreciados. A mim custa-me de sobremaneira porque tenho o terrível defeito de querer agradar a toda a gente. Não gosto de saber quem não gosta de mim.
Hoje, contudo, tive uma surpresa agradável. Encontrei uma pessoa desses círculos e acenou-me com um sorriso. Não vai tudo mal por este reino, afinal...
Consigo ser implacável comigo mesma.
Não é fácil ser-se.

Já passei por situações de maledicência aguda e pessoas que me queriam bem achavam que eu devia retorquir. Não envolvendo terceiros queridos e sendo essa maledicência só dirigida a mim não tenho por hábito reagir, a não ser que sinta a minha dignidade profundamente ferida. A não ser que me faltem ao respeito descaradamente.
Os maledicentes não querem saber da verdade, só lhes interessa a intriga. São autênticos abutres. Desejarmos um esclarecimento da intriga só os rejubila. A verdade vem sempre à tona.
Pode vir é fora de horas... para os outros. Para nós esteve sempre presente.
E no final, é só mesmo isso que interessa. O acreditarmos em nós, nas nossas opiniões, nas nossas escolhas, mesmo que isso signifique "a diferença" para outras pessoas.
E se por vezes me custa o desagrado de outras pessoas - e só porque, de uma forma ou de outra, elas contêm significado para mim - (os que me são indiferentes nada me dizem), é o desagrado por mim mesma que me custa mais.
Não é fácil ser-se.
A minha consciência é maioritária e é-me bastante ditadora.
É com ela que tenho de aprender a saber viver.

***



sábado, 10 de maio de 2014

Inside job

"Mas não será a ideia de felicidade uma idiotice? Teremos mesmo necessidade dessa perspectiva irrealista? Limito-me a achar que viver instantes felizes já é uma sorte e uma glória. 
 o riso, um recurso maravilhoso."

Yasmina Reza
Jornal Expresso, 10/05/14

A propósito desta afirmação de Yasmina Reza, acho que é consensual que ninguém acredita na felicidade plena. Aliás, nem entendo o conceito de plenitude aplicado à felicidade para esta ser considerada como tal.
Acho lógico a felicidade ser pequenos instantes ou períodos mais alongados de alegria e satisfação. Com sorte podem ser muitos, espaçados, ou com ainda mais sorte, muitos e consecutivos. Em ambos os casos, plenamente vividos.
A grande questão é saber como lá chegar.
Lembro-me de em pequena achar que à medida que as pessoas crescessem e envelhecessem, as suas vidas tornar-se-íam sempre melhores. Hoje já não acredito,... mas desejo-o.
E dói cada vez que vejo pessoas que têm acompanhado o meu crescimento a envelhecer em condições cada vez mais tristes. Por doença ou por desgraça.
Há toda uma utopia que se esvai. E fico a pensar na vida, na minha vida. O que ando a fazer dela. O que ela me reserva.
Algumas vezes sabemos onde queremos chegar, mas não sabemos como o atingir.
Algumas vezes sabemos onde queremos chegar e fazê-mo-lo mal.
Algumas vezes sabemos onde queremos chegar e fazê-mo-lo mal a pensar que o fazemos bem.
Algumas vezes sabemos onde queremos chegar e desistimos antes de tentar.
Algumas vezes sabemos onde queremos chegar, mas o medo deixa-nos pelo caminho.
Algumas vezes sabemos onde queremos chegar e boicota-mo-nos.
Há pouco falei de sorte, mas não é só sorte, porque isso faria da felicidade algo somente aleatório e não o é.
Também é discernimento nosso, crença em nós e nos outros.
É esperança que os outros não nos vejam como meras distracções, que nos reconheçam algum valor e nos respeitem.
É desejar que quem venha, venha por bem e não nos sugue o que lhe falta para benefício próprio.
É conseguirmos avaliar o que não nos faz bem e afastar-mo-nos sem delongas.
É conseguirmos reconhecer o bom que nos aparece e não o toldarmos com as nossas dúvidas, as nossas desconfianças, as nossas mágoas, os nossos medos.
E é muita sorte quando alguém aposta em nós mesmo no meio de todos os seus quês e dos nossos quês... e o deixamos entrar, no meio de todos os nossos quês e dos seus quês.
A felicidade esgueira-se mais do que desejamos e cada vez mais acredito que é por pura incompetência nossa.

"Happiness is an inside job"



quinta-feira, 8 de maio de 2014

Colo

Há dias em que ser adulto não nos adianta de nada.
Há dias em que as nossas ferramentas de adulto não resolvem nada.
Há dias em que sentimos o mundo como algo estranho e feroz, com aquele espanto e receio de pequenos.
"Isto é possível!?"
E queremos colo. Queremos aninhar-nos em alguém que nos é querido e pedir-lhe "faz desaparecer".
Já sabemos que não desaparece, mas atenua. Sentimo-nos menos perdidos. É uma espécie de vaga quente que nos percorre da cabeça aos pés ao saber que temos alguém que cuida de nós, que nos quer bem. Não cura, mas é paliativo.
Há dias que apetece apagar o mundo.
Há dias que nos apetece apagar a nós mesmos por nos boicotarmos constantemente, por não termos um manual de instruções claro e por não entendermos o dos outros.
Control - alt - delete (simples, assim) ao receio, à desconfiança, ao egoísmo, à mágoa.
Não é assim tão complicado vermos o outro como um ser que sente, que gosta, que sofre.
Por estas linhas mestras estaremos a cuidar no imediato o outro, mesmo o desconhecido, e quase sem esforço.
Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
Não é difícil,... não pode ser difícil.