terça-feira, 25 de junho de 2019

Bom caminho

Num desafio que coloquei a mim própria, decidi fazer uma longa caminhada. Desejava fazer algo diferente e sair propositadamente do meu mundo habitual.
Receando as bolhas e o quão penoso tornaria o passeio, protegi os meus pés da maneira que achei mais adequada.
Esta alma comprou pensos específicos de bolhas e presenteou os pés com uma data deles, ainda desnecessários.
As dores forem surgindo, intensificando-se, mas achava a coisa normal. Só tinha pena de ser tão cedo.
Na verdade, durante dois dias mal examinei os pés de tantos pensos que pus. Ao terceiro dia, as dores agudizaram. Além dos pensos das bolhas recorri a um truque que tinha lido: comprar pensos higiénicos e colocar nos pés para evitar a fricção com as sapatilhas. Pior a emenda que o soneto. Os pés pareciam estar em fogo.
Na paragem para o almoço já não aguentava as dores. Desesperada fui à casa-de-banho e, decidida, retirei tudo. Se era para doer que doesse, pé contra sapatilha.
Sentei-me e ao primeiro "estás bem?" desabei. Tive um ataque de choro, soluçava de dor, de vergonha, de tudo.
A tarde foi dura, mas foi a partir daí que as coisas melhoraram.
Numa fonte de água termal quente existente na cidade onde dormimos, deixei os pés saborear o descanso e tirei todos os pensos das bolhas. Trataram-me as malvadas que surgiram à volta dos pensos.
Mantive a decisão dos pés livres, sem penso algum. Se era para doer, que doesse, sem protecções desnecessárias.
Os pés melhoraram, respeitei os seus timings e tudo correu mais ligeiro. Chegaram ao fim moídos, mas no fim havia mais a regozijar. A dor nos pés tornou-se secundária.
Daqui fiz um paralelismo com a minha vida. Tirei ilações.
E aprendi, espero que de uma vez por todas.

"Devemos sempre ler os nossos pés." Txabi


quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Jacinto




Hoje vim do teu funeral, Jacinto. Algo que me parecia tão longínquo como escrever-te isto.
Nem era sequer longínquo porque a tua morte nunca me passou pela cabeça.
Habitua-mo-nos à presença das pessoas, mesmo não falando, e concedemos-lhe uma espécie de imortalidade.
Quando a Raquel me confirmou a tua morte, as lágrimas caíram-me instantaneamente. Pode-se medir o quanto uma pessoa significa para nós assim? Um significado que nem eu tinha noção do seu valor?
O padre que te fez a cerimónia de despedida falou no sentido da vida, no momento mais (im)próprio.
Não te via há 20 anos e quando te vi as lembranças correram bem mais rápido que o tempo. A pessoa que jazia à minha frente estava cheia de vida e bem disposta nas minhas memórias de teatro. Sabes que passei pelos Fenianos sem querer a caminho da capela? Quando reparei nisso ao passar, pensei que há coisas que a vida se encarrega do relembrar ao nosso subconsciente.
O sentido da vida... Acho que vi o teu de alguma maneira no semblante de cada choro contido ou mais visível, em cada tristeza de olhar, em cada recuo ao primeiro momento em que te viam ali deitado, nas reuniões que proporcionaste.
Não leves a mal o meu reparo agridoce, fez lembrar uma cena de filme: a reunião de algumas pessoas do nosso curso de teatro ao final deste tempo todo na despedida de um amigo.
Acho que perdi muito ao perder contacto contigo por tudo o que li e assisti. O sentido da tua vida está nas boas memórias que deixaste nas pessoas, acho eu. Falo por mim.
Quando soube da tua morte decidi no momento que tinha de me despedir de ti, que de alguma forma te devia prestar essa homenagem. Porquê? Nem sei... Mas o que me deste enquanto tive oportunidade de contacto contigo foi-me muito especial, para que saibas.
E.,tristemente, voltaste a dar algo de especial. Permitiste-me o reencontro com a Raquel, a Briona, a Sandra Tê. E outras caras e nomes que o tempo me fez esquecer e que logo recordei no primeiro olhar.  Levaste-me a voltar a escrever neste blogue esquecido.
Olha..., e por causa de ti limpei uma data de gavetas que tinha em casa à espera de arrumação há anos... :) Tive a mesma reacção com a morte da minha avó... limpar.

O sentido da vida é dar. O mais pequeno e insignificante que possa ser. Porque o nosso pequeno pode ser grande e muito especial a alguém.

"Obrigada por tudo o que me deste." Assim me despedi de ti no livro de condolências,
Adeus, Jacinto. Foi um prazer ter-te conhecido e um privilégio o pouco que partilhámos... que foi muito para mim.


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Reflection


Ontem acabei de ver uma série em que o mais importante que lhe retiro é a capacidade de nos adaptarmos ao mundo através da nossa maneira de ser tantas vezes incompreensível para outros e, quantas vezes, difícil de aceitar mesmo por nós próprios.
Ontem acabei de ver uma série em que o mais importante que lhe retiro é também a capacidade de alguém nos conseguir fazer rir. Não aquele rir só de lábios, tantas vezes um espasmo sem sentido ou com o sentido de não ser antipático, mas aquele que vem das entranhas, que nos surpreende e obriga a relaxar a face e sorrir além lábios.
Há dias vi-me emocionada com a morte de alguém que nem conhecia. Alguém que lia regularmente em mural alheio e que marcava pela sua presença boa.
Há dias vi-me emocionada com a morte de alguém que nem conhecia porque vi a falta que faria aos que ficaram. Falta não só nas conversas, mas acima de tudo naquelas rotinas que parecem aborrecidas, mas que constroem vida, amizades e afectos. É o lanche que se paga e “para a próxima és tu”. É os coupons de supermercado que se guardam porque vai dar jeito a…. É as promoções que se avisam. É o presente que se tinha em mente e que fica por dar.
Acho que as pessoas subestimam o poder do virtual nos afectos. Ou demonizam-no. Como se a pessoa que somos no virtual se descole da real. Não. O que quer finjamos no virtual somos nós, bem reais, porque a capacidade de mentir é real, só o caminho é que agora também pode passar pelo virtual.
Há pessoas que subestimam a capacidade de dar através do virtual, quando muitas vezes, infelizmente, é mais fácil dar através deste do que no real. Porque a capacidade de dar existe, porque não se dá o que não se tem.
Há pessoas que subestimam a capacidade de amar através do virtual, que ferem do alto das suas palestras, como se o facto de não vermos ou sermos vistos lhes tire a capacidade de magoar e nos tire a capacidade de sentir.
Por estes dias apercebi-me que com o avançar dos anos choro mais: de tristeza e de alegria.
Por estes dias apercebi-me que com o avançar dos anos me emociono mais: seja com o bom ou com o mau.
Por estes dias apercebi-me que tudo é amizade e atenção, mas que estas são constantemente lesadas com o egoísmo dos interesses próprios.
Por estes dias apercebi-me que o nosso olhar muda inexoravelmente. De um olhar vivo, sonhador, expectante para um olhar reflexivo, desalentado e conformado com o que a vida não deu e provavelmente não dará.

Reflection, de Ron Hicks

domingo, 5 de junho de 2016

Espelhos


O senhor piscou-lhe o olho, acenou com a cabeça e sorriu mostrando que tinha reparado na sua presença e seguiu caminho.

Um sorriso enorme abriu-se no rosto do rapaz. Por vergonha ou excesso de contentamento (ou ambos), o seu corpo mexeu-se irrequieto, as mãos pareciam não ter sítio onde pousar e olhou para as pessoas à sua volta -  o enorme sorriso mantendo-se - como que a dizer “Viram? Ele sorriu e cumprimentou-me? Viram? Ele reparou em mim…”

 

Há pessoas que importam mais que outras e é a atenção delas que contribui para a nossa felicidade (também). Por muita atenção e interesse que tenhamos de muita gente, é a daquelas que nos importa que conta acima de tudo.

Por muito que necessitemos do nosso espaço, acredito na necessidade imperiosa de preenchermos outros espaços. Um não exclui o outro, óbvio. E acho que a nossa felicidade maior passa essencialmente por aí, pelos espaços em que nos deixam entrar e conviver.

Depois existem os espaços a que desejamos pertencer. Há pessoas que importam mais que outras. Não tem de ser recíproco, mas é essa reciprocidade que ditará a existência e sobrevivência do relacionamento.

A atenção que nos é dedicada e a que dedicamos… Quando a balança se desequilibra pouco se salva.

Almas maiores darão sem esperar em troca. As outras sofrem… porque tendo tido, não entendem agora a desatenção, o desinteresse, o descuido. Ou se entendem, custa-lhes aceitar o óbvio.

O óbvio de sermos as mesmas pessoas que cativaram, importaram em determinada altura mas que agora já não somos suficientes,  pouco significarmos e sabermos tão bem o que isso quer dizer. Porque também nós significamos muito para outros que pouco ou nada nos dizem e lidamos com a situação – quantas vezes – com desapego, indiferença, pragmatismo frio.

Porque é nosso direito darmo-nos a quem nós bem entendermos, preenchermos o nosso espaço com quem bem quisermos e desejarmos e no caminho desligarmo-nos de quem pouco ou nada nos diz.

Mas este direito é cru, egocêntrico e quando nos bate à porta entendêmo-lo, mas detestamo-lo. Porque é um direito-espelho. Porque sentimos na pele o descuido e desinteresse que nós próprios infligimos a outros, porque sabemos o quanto isso dói e quanto faz sofrer.

E no meio disto tudo, resta a delicadeza e sensibilidade no trato, não abusarmos da boa vontade e generosidade de outros e sermos compassivos.

E seguir em frente aceitando a descoberta de novos espaços...


domingo, 15 de maio de 2016

De que adianta o "para sempre"?

Ando aqui às voltas sobre o que pensar, sobre o que escrever, se devo escrever, se devo publicar.
Isto não é sobre mim, mas sobre ti.
Espantou-me a minha reacção quando soube hoje porque partilhámos poucos momentos juntas.
Mas tinhas algo que chamava a atenção. Acho que era a tua aura. Tinhas um sorriso meigo, uma calma que irradiava do teu rosto e nos transmitia paz.
Depois fiquei a admirar-te por seres voluntária, abdicares das tuas férias e ires em viagem ajudar outros. Confirmava a alma nobre.
Depois transformaste-te num exemplo de força e esperança. E acho que foi isso que me fez desabar hoje...
São precisos exemplos de luta vencedora neste mundo, são precisas tochas de esperança para aguentar um dia-a-dia cada vez mais duro. Gostava que tivesses sido um. Perene. Presente. Físico.
De que adiantam estrelas no céu se são necessárias na terra? De que adianta "para sempre" quando o agora é imprescindível num beijo, num abraço, num olá, num (sor)riso, no trabalho, num momento, num olhar?
Num mundo de substituíveis, como será o mundo sem nós?
Obrigada pela tua pegada. Obrigada pelo teu rasto.
Obrigada pelo bom que deixaste nos que contigo conviviam. Porque foi esse o teu legado. Porque foi assim que enriqueceste este mundo.
Beijinho, Ana.















terça-feira, 12 de abril de 2016

Vergonha

Há uma vergonha na exposição.
Há uma vergonha na facilidade com que se acredita, se confidencia, se ri, se faz rir, se ouve, se fala, se acarinha, se cometem actos inconfessados, se ousa, se confia,...
Há uma vergonha no dar... porque se achou que significava algo, que não era só proveito egocêntrico, mas uma construção de algo, por muito indefinido que fosse.
E esta vergonha alimenta-se do vazio que se sente porque parece que tudo o que era dado, e como tal valioso, se esfumou como se não tivesse tido qualquer importância e daí o seu natural desaparecimento. Como se o vivido tivesse sido uma ilusão, um sonho de uma noite, sal ou açúcar que se desfazem, sabão que se transforma em espuma...
Há uma vergonha na facilidade com que se é esquecido, na facilidade do não-diálogo, da ausência, como se tudo o que tivesses ou sido fosse inútil, sem valor, sem interesse.
E isto corrói. Corrói quando a luz mais bonita do dia te faz chorar por lembrar a felicidade; quando te emocionas em demasia com um amigo que tem um gesto atencioso contigo porque te faz lembrar a inexistência de outros gestos que gostarias de ter recebido; quando viras a cara para outro lado para não ver o carinho entre quem se gosta porque te faz lembrar o que gostarias de ter vivido; quando te martirizas a ver o que não queres porque preferes a presença dessa dor à ausência total e absoluta de uma presença; quando algo te diz muito, mas a conversa só tem espaço no teu imaginário; quando te comparas depreciativa e estupidamente com tudo e todos desvalorizando-te a um ponto que até tu sentes que estás a ser injusta contigo própria.
Há uma vergonha no sofrer. Porque talvez até isso seja perda de tempo, de vida... que no fundo só a ti te toca.