terça-feira, 24 de novembro de 2015

O Lugarejo

Logo que teve oportunidade abandonou o lugarejo onde nascera.
Estudar fora para ser “doutora” foi a saída airosa e pouco culpabilizante que arranjara para se afastar dos pais sufocantes e vizinhos que nada lhe diziam. Achava-se mais inteligente. Detestava aquela falta de maneiras das gentes da lavoura.
Era ela e mais uns poucos jovens naquela aldeia de velhos, perdida num interior também ele perdido. Tinham-lhe feito planos para se casar com um deles quando fosse “crescida o suficiente”, o que lá isso quisesse dizer.
Regressava 20 anos depois da morte da mãe, para tratar do funeral do pai. Sempre detestara o seu feitio violento e autoritário, que a doença – disseram-lhe – tinha entretanto suavizado. 
Tivera-lhes algum amor, mas não lhes tivera qualquer carinho.
Desde que tinha deixado o lugarejo, só voltou a ver a mãe mais uma vez, no seu velório. Viu descer o caixão, despediu-se do pai à pressa, “se precisar de alguma coisa, diga” e foi embora. 
O pai nunca disse nada…
A D. Conceição, a vizinha do lado, ligou-lhe a comunicar a morte e encarregara-se dos primeiros preparativos. O pai já velava na capela. "O seu paizinho teve sempre o seu número de telefone escrito no quadro do frigorífico, foi fácil encontrar."  
"Sempre", pensou...
Saiu da Junta de Freguesia onde pediu o número da campa da mãe - 231 - e dirigiu-se a pé para o cemitério.
- Belinha?! É a menina Belinha?! 
Quase de imediato a senhora abraçou-a, deixando-a sem acção.
- Há tantos anos, menina! E que pena só a ver nestas alturas tristes. Mas está bonita. Sempre foi uma moça muito bonita.
A senhora não largava as suas mãos e aqueles dedos rugosos, ásperos, com unhas sujas amarelecidas incomodavam-na profundamente, mesmo que acompanhados de palavras atenciosas.
Tornara-se pouco simpática - ou antipática? - e mesmo penitenciando-se por isso, não o conseguia evitar.
- Ainda bem que já não há mais ninguém para morrer senão só me continuaria a ver nestas ocasiões. 
A senhora estancou. E ela engoliu em seco de tão arrependida do que tinha acabado de dizer.
- Desculpe, D. Dorminda, estou muito transtornada - mentia -, não era isto que queria dizer - mentia. Vou agora ao cemitério e estou muito nervosa - não mentia.
- Eu compreendo, menina. A dor faz-nos dizer coisas sem sentido. Mas olhe, se a anima, bem que pode orgulhar-se do seu paizinho. Fez muito pela aldeia. O que fosse preciso estava sempre pronto a ajudar.
Sorriu secamente. Nunca entendera as boas acções fora de casa quando não as havia dentro. Na sua casa sempre houvera pudor em mostrar amor, carinho, atenção. Como se mostrar algum sentimento fosse sinal de fraqueza. Mas teria havido, de facto, algum sentimento?
Uma vez mostrou ao pai a mini-saia que a mãe lhe tinha feito para levar à festa da aldeia "Gosta, pai?"
"Viraste vaidosa? Olha que as mulheres sérias querem-se recatadas, humildes." Perdeu o sorriso instantaneamente e não mais o recuperou naquela noite. Nem quando dançava abraçada ao amor da altura, que lhe deixou de falar precisamente nessa noite. "Teria pensado ele o mesmo dela?" Depois viu que não, quando soube ter sido trocada pela melhor amiga que nessa noite tinha levado uma camisola com um grande decote em v. A amiga sempre tinha tido mamas maiores e deixava-se beijar e apalpar nos fardos de palha do Sr. Joaquim das Pombas, onde se escondiam sorrateiramente sem nunca terem sido apanhados.
Agradeceu a atenção "peço desculpa, mas tenho de ir". Precisava de se refugiar algures, evitar todo o tipo de olhares.
Em frente ao cemitério encontrou um café, sem viv'alma, "Que bom". 
- Um café curto, por favor.
O homem olhou-a prolongadamente. Tinha um ar seboso, camisa de mau gosto que mal lhe tapava a barriga proeminente.
- Vai-me servir um café ou não?
- Sim, claro.
- Curto, chávena quente. 
O cinto mal segurava as calças. O homem baixou-se com dificuldade para apanhar algo do chão e ela viu-lhe o rego. Desviou o olhar, enojada.
- Ora aqui está o café como deseja.
- Obrigada. Quanto é?
- Nada, oferta da casa.
- A que propósito?
Olhou-a de novo fixamente. 
- É regra da casa. O primeiro cliente tem direito a um café de graça. Calhou à senhora.
Bebeu o café em dois tragos. Os olhos dele desta vez pareceram-lhe familiares
- Não aceito. Nesta rua são mais os mortos que vivos.  Deve precisar do dinheiro. 1 euro, fique com o troco.
E saiu porta fora.
Só já na porta do cemitério o reconheceu. Olhou para a porta do café, atónita. Aquele não podia ser o César! O César dos olhos verdes raiados de azul - agora mortiços - que queria ser arquitecto, médico, advogado, construtor de pontes?! O César com quem tinha dado o primeiro linguado "mas não me podes apalpar!" no meio do milho?! O César que tinha um rabo tão bem feito que dava vontade de o ver sempre de costas?! O César que lhe tinha prometido uma volta de mota com ele bem agarradinhos, mal a comprasse?! O César que afinal a trocou pela melhor amiga, a das mamas grandes?! O que é que restava dele?!
Mal refeita, enfrentou o cemitério ,"os mortos não jazem só aqui".
Olhou para todas aquelas campas, momentaneamente sem saber o que fazer, por onde procurar a campa da mãe. "Esqueceste-te do sítio, merda de filha que tu és."
- Precisa de ajuda, menina Belinha?
Virou-se, sobressaltada. 
- Se não lhe causar transtorno, D. Dorminda...
- Claro que não, é na ala lá mais abaixo.  A sua mãezinha ficou num sítio muito bonito. O seu paizinho tinha muito brio na campa, vinha cá todas as semanas lavar o mármore e mudar as flores. Agora, aqui ficarão... só com a pedra - alfinetou.
Está a ver este banquinho? Aqui se sentava ele, a falar com a sua mãezinha. "Tenho muitas saudades da minha santa" disse-me ele muitas vezes.
"Santa", pensou ela. Sem dúvida que sim...que aturou as noites de jogatana e os regressos pelas madrugadas dentro vindo dos encontros com as putas da estrada que levava para o pinhal e com quem gastava o dinheiro das compras da casa. Saudades? Só se fosse do exercício de virilidade que transformava a mãe num saco de boxe "Onde estão os meus chinelos, puta de merda? Nem dona de casa sabes ser, sua cabra. Até as putas me lavam os pés melhor que tu!"
- Está bem, menina?
- Como?!
- Está muito pálida e com uma cara estranha.
Não estava habituada a fraquejar, a demonstrar emoção. Não estava habituada a que reparassem na sua pessoa. Um mau estar súbito apoderou-se dela, tudo começou a mover-se debaixo dos seus pés, as campas pareciam sair do sítio, as flores pareciam estrume, precisava de sair dali o mais rapidamente possível.
Desatou a correr pelo cemitério fora, como se fugisse de algo invencível que a perseguia sem piedade alguma. Só parou numa rua das proximidades, longe de tudo e de todos.
"É só espaço, Isabel, só espaço. Não é tempo. Respira. Acalma-te."
Um vómito sacudiu-a, mas nada saiu, a não ser uma aflição tremenda.
E numa espécie de uivo, chorou, chorou convulsivamente por ser uma promessa não cumprida...

(Talvez continue...)



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