sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Vivermo-nos

Não era uma senhora simpática.
Sentia-a como uma senhora mal-amada pelos seus, por ela própria, pela vida.
Vizinha dos meus pais, tornou-se minha, e nunca dirigimos mais que um cumprimento de fugida.
Sentia-a como uma senhora infeliz, já não dona dela, que sobrevivia a si mesma. Só.
Comecei a cruzar-me mais com a senhora nos últimos meses e por diversas vezes achei que não me reconhecía. Uma vez foi indelicada comigo, vi-lhe o espanto quando se apercebeu quem eu era, mas voltou ao seu mutismo.
Há três dias atrás pedi-lhe licença para entrar num sítio que iria começar a limpar, olhou de soslaio educado para mim e permitiu-me a entrada. À saída agradeci-lhe. Não me falou.
Há um dia atrás faleceu. E automaticamente lembrei-me daquelas parcas palavras trocadas.
Não sei se por necessidade minha, associei-as quase inconscientemente a uma despedida nossa. E não consegui evitar a comoção. E nestas alturas badala-me sempre aquele tic tac tic tac mórbido da contagem decrescente da vida das pessoas.
A realidade é que cada dia que passa vamos ao encontro da nossa morte. Um dia tic, outro dia tac.
E nestas alturas penso que não se consegue evitar as perguntas:
Damos valor ao que temos? Lutamos pelo que queremos? Desperdiçamos vida? Deixamos legado não material?
Choca-me as pessoas que se vão embora desta vida como se quase não tivessem existido. Como se ninguém lhes sentisse a falta. Que se tornem rapidamente numa lembrança longínqua sem saudade.
Talvez seja importante avaliarmos regularmente o nosso legado de vida para nos sentirmos, para nos vivermos, para não simplesmente sobreviver.

Descanse em paz e ... até sempre.


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